domingo, 16 de janeiro de 2011

A devoção ao Senhor Jesus dos Navegantes em Ílhavo

   Realiza-se anualmente a festa em devoção ao Senhor Jesus dos Navegantes. Esta é, talvez, a de maior tradição, e a que se mantém mais viva de entre as festas de Ílhavo, continuando a sair em procissão no primeiro fim-de-semana de Setembro.

   A imagem do Senhor Jesus, um Cristo crucificado, que, juntamente com a Virgem e São João Evangelista aos seus pés (imagens de vulto do século XVIII da oficina de Machado de Castro) representam a cena da Paixão de Cristo no Calvário, desce do altar para incorporar o andor, com a miniatura do lugre bacalhoeiro “O Navegante” do seu lado direito, dando mote ao que é a sua denominação popular: Senhor Jesus dos Navegantes.

   Ílhavo, terra de porto de mar, onde existem registos de pesca longínqua desde finais do séc. XVI, reza em devoção, lembrando seus marinheiros e embarcações naufragadas, vidas de esforço feitas de água salgada e peixe.
   A devoção ao Senhor Jesus remonta já ao séc. XVII, onde existiria na antiga Matriz de Ílhavo como confraria organizada. Nas Informações Paroquiais de 1721, acerca da descrição da Igreja Matriz de São Salvador e antes das obras de ampliação arquitectónica, o Pe. José Monteiro de Bastos descreve a capela do retábulo Senhor Jesus nas seguintes palavras:


Retábulo e andor do Senhor Jesus dos Navegantes
em dia festa, Hugo Cálão, 2007
 “...no corpo da mesma igreja ao lado esquerdo esta outra capella do povo com Confraria erigida, sustentada e fabricada dos freguezes com esmollas que tirão os mordomos e rendas de Legados que lhe forão deixados, e he do título desta Confraria e Capela do Senr. Jesus, aonde está uma imagem milagroza de Christo N. S. Crucificado, e outro com a cruz ás costas [Cristo dito Senhor dos Passos] , e com a imagem de São Francisco e outra de Santo António. Tem obrigação Ant.º Frêz. Facão da Ermida mandar cantar huma missa em dia de S. Franc.º e se diz missa todos os domg.º e dias s.tos por alma de Miguel Nunes o q. vinculou fazendas e q he administrador o Pe. Mel Nunes da Fonseca de Alqueidão, e mais 3 missas cada semana por alma de Izabel M.el mulher do d.º Miguel Nunes de Alqueidão de q he administradora Maria de Oliv.ª mulher de M.el de Souza Ribr.º m.or da Villa de Aveiro e tem os jazigos na dita capela.”

   A imagem do Senhor Jesus dos Navegantes, que se crê ser do séc. XVII, sempre esteve neste altar do lado sul. Em 1758, na mesma capela chamada do Senhor Jesus, a imagem é descrita com o mesmo Senhor dos Passos e com um Ecce Homo dito de Senhor da Cana Verde, passando a imagem de São Francisco, em barro vermelho policromado, para o altar onde existia o  sacrário, hoje o altar de Nossa Senhora do Rosário, transitando em 1780 para o retábulo principal da demolida Capela das Almas juntamente com uma imagem de Santo António. Mais tarde colocou-se uma imagem do Senhor Morto na base deste grande crucifixo, e adquiriram-se em 1950 e 1960 para a banqueta do retábulo as imagens de São José e Santa Filomena em madeira.

   Vemos, portanto, que já no ínicio do sèculo XVIII, e certamente durante todo o século XVII, a Confraria do Senhor Jesus possuía alguns fôros de propriedades e organização de mordomias, provavelmente com festa instituída. Uma das actas da Junta de Paróquia de 1893 refere que estas Confrarias já se encontravam extintas há mais de trinta anos tendo passado os seus bens para administração da referida Junta, assim como os encargos inerentes às festas. Existiria um tombo contendo todos este aforamentos, não só da extinta Confraria do Senhor Jesus, bem como da Confraria da Senhora do Rosário e de São Sebastião, descrito no inventário da Junta de Paróquia de 15 de Maio de 1911 (nº42) e uma lâmpada grande de prata do altar do Senhor Jesus (nº45). Desapareceram ambos, o tombo e a lâmpada, antes da década de 30 do inventário de 1941. Não existindo o original do tombo existe um traslado de bens e fôros da Confraria do Senhor Jesus datado de 14 de Novembro de 1810.

   A devoção pela imagem do Senhor Jesus crê-se que começou sem ligação marítima, continuando a invocação da imagem apenas como Senhor Jesus, até finais do século XIX, fazendo-se em Ílhavo a festa dos pescadores em devoção ao São Pedro Apostolo. As várias campanhas de pesca costeira da Costa Nova do Prado, depois da esmola recolhida por todos, faziam a sua procissão que se festejava no dia 29 de Junho.
   A imagem de São Pedro tinha lugar de honra num pequeno barquinho, onde figuravam imagens dos apóstolos, uns remando, outros a recolher redes, com a imagem de São salvador, o padroeiro da vila de Ílhavo, à proa abençoando o trabalho da faina. Desta antiga devoção, que terminou com a dissolução das antigas campanhas de costa pouco depois de 1840, restam hoje as pequenas figuras de oito dos apóstolos do antigo barco processional que saía por ocasião da festa de São Pedro, atualmente nas reservas do Museu Marítimo de Ílhavo.
   Com a abertura da barra de Aveiro, em 1808, e com o cultivo do pinhal das Gafanhas em 1812, por projecto do Eng. Luís Gomes de Carvalho, a construção dos estaleiros e organização de campanhas de longo curso deu início a uma nova devoção dos pescadores ilhavenses, transitando a grande resta religiosa que se celebrava ao São Pedro (das pequenas campanhas de costa), para a atual festa dos marítimos em honra do Senhor Jesus dos Navegantes (das grandes campanhas bacalhoeiras). Embora o primeiro registo no arquivo paroquial a esta nova festa exista numa acta da Junta de Paróquia, com data de 7 de Agosto de 1865, onde aparece como despesa obrigatória a “Festividade do Senhor Jesus e São Sebastião”, a imagem com a nova invocação marítima de Senhor Jesus dos Navegantes apenas aparece nesta terminologia descrita em ex-votos pintados de finais do século XIX e início do século XX.
   O incremento económico dos capitães nos prósperas campanhas de pesca de bacalhau  fez crescer a  devoção, e a fé ilhavense, revestiu-a com o melhor da sua arte, ofertando como ex-voto (pagamento de promessas e pedidos), inúmeros objetos de adorno do retábulo e da imagem.


in Cálão, Hugo, Madaíl, Isabel,
Senhor Jesus dos Navegantes - Mar e Devoção,  2007, pp. 11-12.
Ed. Paróquia de São Salvador de Ílhavo, nº depósito legal 262970/07